Revista Fragmentos
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Vou lhes contar! da vez em que os músicos salvaram o dia.

Era um dia atípico. Não por nenhum motivo metafórico, mas por um motivo simples: a terra se movia. A terra dançava, pulava, chacoalhava, gritava. Provavelmente queria dizer alguma coisa, mas ninguém se atentou a isso naquele momento. Afinal, quando a terra grita, as estruturas ruem.

Fato é, que era um dia atípico. O dia dos encontros. Diversos congressos de diversas áreas ocorriam simultaneamente naquele dia. Na quadra dos encontros, os congressos se dividiam entre as áreas de atuação. Havia congresso de advogados, de médicos, de engenheiros, de historiadores, de músicos – até de jogadores de futebol havia congresso! Dia estranho, esse. Por que os congressos de tantas áreas aconteciam ao mesmo tempo? Enfim. Havia outros, mas não vem ao caso porque não sobreviveram. Só os que estavam perto dos músicos sobreviveram.

Tudo estava calmo e todos faziam aquilo que sabem fazer. Advogados advogavam, médicos medicavam, engenheiros engenhavam, historiadores historiavam, músicos musicavam e os jogadores… bem, falavam sobre futebol e outros assuntos. Dividiam o espaço, mas não igualmente, é claro. Enfim, tudo fluía conforme o usual, inclusive o desprezo entre todos, claro. Todos desdenham as funções de todos. Mas ninguém é mais desdenhado que o músico – até necessitar de uma canção para salvar sua vida, sem dúvida.

Quando a terra começou a dançar, após o seu grandiloquente grito, muitos poderiam pensar que ela dançava ao convite dos músicos. "De raiva, os músicos chamaram a terra para dançar". Mas não, ninguém pensou nisso além de mim, pois, como já disse, as coisas começaram a ruir. Figurativamente, talvez, mas certamente ruiu literalmente. A grande coincidência de estarem todos no mesmo lugar, tendo que dividir o mesmo espaço, mesmo que não igualmente dividido, se mostrou no momento em que as estruturas ruíram, e os grupos se viram soterrados no mesmo vão. A estrutura deixou uma segunda chance em forma de vão. "Se virem nesse vão", disse a terra em forma de grito grandiloquente.

No vão, no bolsão de ar, na caverna formada pelos destroços das estruturas, nem houve tempo para lamentar os que não sobreviveram, todos começaram a fazer o que sabiam de melhor para tentar sair de lá: brigaram, reclamando uns dos outros. Após extravasarem seus ódios, partiram para a segunda coisa que melhor sabiam fazer: os advogados advogaram, os médicos medicaram, engenheiros engenharam, os historiadores historiaram, os jogadores… bem, falaram sobre futebol e outros assuntos. E os músicos? Bem, foram colocados de lado, já que seus instrumentos foram destruídos no grande desmoronamento. "Músicos sem instrumentos? arrumem o que fazer!", advogou um advogado.

Após algumas horas, nenhuma ajuda apareceu. Os grupos cansaram e caíram sentados de desgosto. Nem mesmo os engenheiros, grande esperança nas mentes dos grupos (por mais que alguns não admitissem), arranjaram solução possível. Como um engenheiro vai engenheirar sem os seus equipamentos? Mesmo que soubessem exatamente o que fazer para levantar os escombros necessários para se salvarem, não havia como ser feito. Alguns bradavam que sabiam o que fazer – o que era devidamente historicizado pelos historiadores –, mas os advogados advogavam que de nada serviria.

Com o tempo ocioso, pelo menos, os historiadores lembraram dos que não sobreviveram e os médicos medicaram aqueles que com o cansaço demonstraram que precisavam. Já os advogados continuaram a advogar. Enquanto os jogadores de futebol… jogavam uma pelada com as pedras – eram sem dúvida os mais tranquilos e alegres naquela situação. 

E os músicos? Assistiam tudo aquilo enquanto musicavam em suas imaginações. Eram como uma orquestra sem instrumentos… à exceção de uma pessoa. Uma jovem cantora. Esta não tivera seu instrumento quebrado, por mais que tenha ficado levemente rouca. Aliás, não era qualquer cantora – cantava em um coral, e havia sido convidada para o congresso de músicos para uma solenidade. 

Esta jovem, em seu tempo ocioso, começou a cantar. E sua voz era… um deleite de pura ressonância. Tocava nos corações daqueles a sua volta. Os músicos, então, perceberam que não necessitavam de seus instrumentos para fazer música. A música estava ali com eles o tempo todo. 

Foi então que os que eram de batuque batucaram, os que eram de sopro sopraram, e por aí vai, todos cantando, tocados pela voz da jovem. Foi quando os historiadores, que se aproximavam para historiar, sentiram o mesmo toque e também foram convocados. Largaram o que faziam no momento e começaram a cantar. Cada um no seu jeito, sem preocupação de afinação, pois a ressonância já estava ali presente. Depois disso, os médicos vieram conferir se estavam necessitando de medicação. Quando foram ao encontro das vozes, perceberam que eram eles que precisavam de saúde. Outro tipo de saúde.

Depois vieram os jogadores de futebol na suspeita que uma festa estava rolando, depois os advogados ao ouvirem aquele barulho que não entenderam e, por fim, os engenheiros cabisbaixos foram tocados. Todos foram convocados. As vozes em uníssono de ressonância ecoavam pelo vão. Aquele bolsão de ar vibrava e vibrava. Ao ponto do som fazer superar barreiras, figurativas e também literais.

No que mudamos a perspectiva e vemos a ajuda. A ajuda está sempre por aí. No caso dessa história, estavam do lado de fora, sem saber que aqueles grupos estavam soterrados. Quando o som superou as barreiras, a ajuda por sorte passava ali perto. Ela ouviu! e foi ao encontro do som. A ajuda se dispôs a ajudar.

Foi nesse momento que os advogados intermediaram o encontro com a ajuda. O plano dos engenheiros foi, então, seguido. Os jogadores de futebol carregaram os feridos no momento em que precisaram. Ao sair do vão, os médicos cuidaram desses feridos. E, felizmente, essa história é possível de ser contada pelo registro dos historiadores.

E os músicos? Bem, foram os que puxaram as comemorações! Afinal, não há festa sem música.


28 de outubro de 2021

Rafael Vasconcellos 

Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.

Série da Fragmentos dedicada a conversar com quem se formou recentemente na psicologia da UFRJ para criar uma maior diálogo entre alunes e ex-alunes sobre caminhos feitos e caminhos possíveis.


15 de outubro de 2021


Cássio dos Santos @psicocassio tem 25 anos, é psicólogo e pesquisador formado pela UFRJ. Estudou no IP entre 2015 e 2019, participando de diversos projetos de iniciação científica e extensão dentro da instituição, indo do campo da psicometria à esquizoanálise. Atuou na fundação do Coletivo Preto Virgínia Bicudo @bicudosdoip e da Roda de Reis @rodadereis. Atualmente, sua pesquisa e atuação clínica são protagonizadas pelo debate entre masculinidades negras e a obra do autor Franz Fanon.


Flora: como você chegou na psicologia?

Cássio: Bom, em 2012 eu me formo no ensino médio, e eu me formo sem saber muito o quê era um vestibular, sem saber muito o quê era uma universidade, ensino superior, eu achava que era uma coisa super inacessível pra mim. Mas eu fui motivado por alguns professores a fazer o ENEM, e eu passei pra estatística na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. Fica ali na Lapa. 

Eu, que morava em Bangu na época, comecei a transitar mais pela cidade, a conhecer mais o centro, a zona sul, a zona norte também. Quando eu começo a fazer estatística, na segunda prova de cálculo eu levanto e saio (risos), entrego a prova em branco e falo: cara, eu não quero fazer isso da minha vida, não é isso, não to sentindo, eu quero estudar cinema. Porque sim. 

Faço pré vestibular pra passar pra cinema na UFF. No pré vestibular, eu comecei também a estar em contato com muita coisa, estudar muita coisa, sempre gostei muito de ler. E aí eu começo a entender sobre cinema, pesquisar cinema, me interessar por cinema e tudo isso, e aí na metade do pré vestibular eu me pergunto: porquê não psicologia?, se o que me interessava no cinema era o efeito que os filmes tinham em mim e nas pessoas, e não como era feito o cinema. Eu achava que era sobre isso (risos) mas acaba que tá tudo junto, né? Enfim, eu já estava estudando, e continuei estudando. A UFRJ me pareceu a melhor opção. Eu só pensei tipo: cara, todo mundo quer ir pra UFRJ, eu consigo, então bora lá (risos). 

Flora: o que mais te interessou na universidade? 

Cássio: Pessoas novas, lugares novos, aulas com professores que, depois que eu passei, eu fui descobrir que eram referências em suas áreas, aulas que mexiam bastante comigo. Desde o início eu colei no Bruno Damasio, pra estudar psicometria, mas ao mesmo tempo eu tava descobrindo muita coisa da psicologia social. Eram muitas portas, muitas portas que eu poderia abrir, e conhecer coisas interessantes sobre psicologia, sobre outros cursos também. 

Flora: E você planejou a sua graduação? Ou você foi fazendo e foi indo?

Cássio: Não, nem um pouco. Eu fui muito pelos encontros... agora eu consigo perceber isso. Eu começo muito influenciado pela minha graduação em estatística, e colo já na psicometria. E aí depois eu começo no projeto [de extensão] da Análise Vocacional com o Pedro Paulo, “Construindo um processo de escolhas mesmo quando ‘escolher’ não é um verbo disponível”. E foi incrível, foi tipo A experiência da minha graduação, se fosse pra escolher uma seria esse projeto, que eu conheci a minha atual companheira, eu conheci minha irmã de santo, que eu conheci meus melhores amigos da graduação. 

E aí eu começo a me interessar mais pela esquizoanálise, a partir desse encontro com a AV. Começo a ler um pouco mais de psicanálise para entender a esquizoanálise, e aí em algum ponto isso se rompe, porque eu encontro a obra de Fanon, Franz Fanon. 

Fanon muda muita coisa pra mim, porque por mais que ele não tenha tipo uma escola de psicologia, uma escola que seja dele, ou que ele faça parte, ele dialoga muito com a esquizoanálise, ele dialoga muito com o existencialismo, ele dialoga muito com a psicanálise, e nesse diálogo eu fui me encontrando, porque eu também nunca tinha definido uma abordagem teórica - até hoje eu não defini uma abordagem teórica consistente - mas nesse trio que Fanon constrói, eu me entendo. Mas não planejei (risos).

Flora: como foi o processo de começar a clinicar?

Cássio: Quando eu me formo, eu me sinto… eu me sinto pouco perdido. Um pouco não, perdido pra caralho. Mas eu me formo, sem uma perspectiva de trabalho óbvia. Desde o 9° período eu cogitava ir pra clínica, estar na clínica, mas eu nunca me sentia apto a estar na clínica. Eu tinha psicólogo, eu estava fazendo a análise, e eu não me achava capaz e apto, teoricamente, a estar naquela posição de estar acolhendo alguém, de estar sendo aquela referência para alguém. E  quando eu termino a graduação, começo a fazer supervisão mesmo sem atender fora, com uma psicanalista incrível, preta, maravilhosa, perfeita, que me ajuda muito. 

Esses três primeiros meses de 2020, aliás, eu tava pra começar um mestrado em filosofia, sem bolsa, e começar a clínica para sustentar fazer o mestrado. E aí, quando eu marco a primeira entrevista, era era tipo final de março, foi exatamente no dia que começou o ‘lockdown’ aqui no rio. A gente desmarcou e passou pro online. Então eu nunca fiz um atendimento presencial na minha vida (risos). 

Esse trabalho é uma construção de longo prazo, até antes da graduação eu to me formando pra ser um psicólogo que acolhe pessoas, e antes, nesse processo de encontrar com a obra de Fanon até a clinica - desde 6° ou 7° período até a clínica - eu começo a estudar muito masculinidades negras, a partir de Fanon, e dialogar com o  feminismo negro, dialogar com o mulherismo africano, pra pensar o que é ser um homem negro. 

Eu não sabia ser psicólogo. Então acaba que foi um processo que eu precisei ter muito cuidado, ainda preciso ter muito cuidado, porque se eu pego 20 pessoas pra atender vou ficar exausto. É isso.


Flora: Como que é esse corpo do online? Como que é estar nesse lugar de escuta online? Como que está sendo fazer esse trabalho no online? Nas dificuldades e nas potências também....

Cássio: Eu não pretendo tirar ele da minha vida. Eu pretendo incluir o presencial mas eu não pretendo voltar 100% presencial. Porque ele [o atendimento online] me dá muita liberdade enquanto pessoa e profissional, de trabalhar de onde eu estiver, contanto que tenha um espaço tranquilo. Mas, em relação a essa relação terapêutica, é esquisito, porque são pessoas que eu nunca vi. É muito difícil, porque começa uma chuva do caralho com raios e trovões e vai faltar luz, a internet cai, ou eles recebem uma notificação que tira o foco.... 

São relações diferentes, ao mesmo tempo que eu to distante, que esse corpo, que essas vibrações aqui do corpo não estão tão presentes, elas viram esse quadradinho que a gente tá aqui, ao mesmo tempo eu tô dentro do quarto da pessoa, eu to vendo o quê que tá se passando no quarto que ela dorme, que ela mora. Então o gato passa, a mãe abre a porta, coisas do cotidiano. É esquisito. E não é um esquisito ruim, necessariamente, tem momentos que são muito bons. Tem uma das pessoas que eu atendo, se mudou, e ela se mudou e tava super animada, e aí começou, ela virou a câmera e falou ‘vou te mostrar a casa’. E foi muito maneiro!

Flora: Você falou [anteriormente] ‘não subestime o poder das redes sociais’… o que você escolher mostrar? 

Cássio: A internet das coisas, a internet que me acorda, que eu mexo a cada seis minutos, que tá presente principalmente nesse período de pandemia, ela tá em tudo, todas as relações fora de casa estão sendo mediadas por isso, quase. Vai causar uma transformação no mundo que a psicologia, como eu aprendi na UFRJ, não está preparada para lidar. Pensar como é que essas relações estão transformando a nossa vida, a vida individual e coletiva - não que se separem - mas como essas transformações estão aí pra mudar tudo, mudar o jogo, mudar a vida. 

E aí, quando eu falo de não subestimar as redes sociais, é porque tem um monte de psicólogo aí fazendo um trabalho bom, e que não se divulga, ou que se divulga de uma certa forma, enfim, de variadas formas. Mas tem muita gente vendendo um tipo de psicologia que não sei se vai de acordo com a psicologia que eu acredito, que eu construo, que eu tento construir - e aí tem aquelas divergências de projeto de vida, de projeto de mundo, o quê que eu quero e o quê que o outro quer - mas a gente, na internet, a gente enquanto classe profissional na internet, tá fazendo muita coisa esquisita, de patologizar tudo. Eu estava vendo umas páginas de TDAH. Cara, eu me diagnostiquei com TDAH por ali. Eu sei o quê que é (risos), mas pelos critérios que ele colocou ali, todo mundo tem TDAH. E é isso, tem a pessoa que vai chegar na minha clínica e vai falar ‘eu tenho TDAH’. E ah, como é que você sabe? Tiktok. Então essa influência precisa ser considerada, com urgência, na nossa formação. 

Flora: você faz um trabalho de divulgação do seu trabalho nas redes sociais, é isso também? 

Cássio: Sim, eu faço.O que eu escrevo ali [no instagram], eu to falando como profissional, e eu to tentando ser extremamente responsável com qualquer pessoa que vá ler. Então eu fico buscando construir um lugar, uma página, uma referência pra caso eu seja indicado, do que que eu penso do mundo, do que que eu penso da clínica, do que que eu penso, enfim, da psicologia humana.  E acho que é uma forma de me colocar nessa esfera.

Flora: Disputar esse espaço é importante, eu acho.

Cássio: Sim, e eu não to tentando me aliar ao marketing, eu não to tentando me vender nessa proposta. Claro, tem um fundo aí - não posso ficar com poucos pacientes, eu preciso que as pessoas continuem chegando, porque eu dependo disso pra viver né, é o meu dinheiro hoje. Ao mesmo tempo, [se] eu bati o meu limite de falar ‘eu estou com a agenda fechada’, eu nem mexo mais [no instagram]. Tá lá, alguém comenta, alguém compartilha de vez em quando, mas… legal, espero que tenham gostado, os textos estão lá, as coisas estão lá. 

A maioria das pessoas que eu atendo são homens, negros, são tipo 80% homens negros, e um deles compartilhou um texto meu. E aí começou a chegar MUITA gente, pra curtir, me seguir e tal. Foi um susto… mais pessoas estão sendo atingidas pelo que eu escrevi, o que aumenta a minha responsabilidade de certa forma com o que eu escrevo. Então talvez eu não esteja escrevendo lá porque eu sei que vou atingir mais pessoas do que antes, e aí eu preciso pensar melhor no que eu vou escrever. 

Flora: Eu acho que é uma questão que perpassa, que todo mundo está pensando agora. Eu também, pensando em me formar e tal, fazer uma página, diferente da minha página pessoal, pra falar, pra enfim, pra compartilhar um pouco o que eu pesquiso, o que eu penso, e sempre bate um lugar da dúvida, será que vale a pena disputar esse espaço ou será que não vale, como fazer pra cultivar isso também sem ficar escravo da ferramenta?  

Cássio: E é tentador também, financeiramente tentador. Porque se eu começo a escrever algumas coisas sobre o que eu pesquiso, sobre o que eu leio, e eu resolvo elaborar um curso - por exemplo, masculinidades negras para psicólogos, possivelmente alguém ia comprar. Mas tem outros lugares que eu poderia estar ocupando e que a internet me possibilitaria - de vender livro, de vender e-book, de vender coisas nesse sentido que tem a ver com psicologia e com o lugar do psicólogo, mas que não é a clínica. Porque a clínica também, eu poderia pegar 40 pessoas, trabalhar oito horas por dia, e ficar muito rico. Tipo, RICO. Mas eu não quero. Eu quero cuidar das minhas plantas, cuidar do meu gatinho, não tô a fim de extrapolar o meu limite pra ter dinheiro. Eu estou tendo dinheiro, pra fazer o que eu quero.

Flora: Às vezes, conversando com uma galera, percebo que rola um medo de falar sobre o dinheiro, principalmente quando você é recém formado, o medo de começar a precificar o seu trabalho, um medo de abordar isso com as pessoas que você atende… como ser acessível, mas também precificar o trabalho que vai ser fundamental pra nossa existência, sustentar a sua nossa vida? Então como você vem encontrando esse limite? Como foi esse processo de começar a dar o preço? 

Cássio: Isso foi uma questão de terapia por muito tempo, sendo sincero. Não sei como é para outras pessoas, mas como meu foco sempre foi estudar negritude, racialidade, quase todo mundo que eu atendo é negro. Então, quando isso atravessa o meu trabalho, eu penso: cara, eu não vou cobrar cem reais de uma pessoa negra, por sessão. Com cem reais ela compra parte das compras da casa dela, com cem reais ela compra uma coisa que ela queira, uma saída no fim de semana. E eu não sei se eu faço tão bem a ela quanto um fim de semana faria, sabe? Eu ficava muito nesse lugar, de não querer cobrar porque ia achar, ou acho, eu acharia que ia fazer falta em outro lugar e que não valia aquilo. E isso foi sendo construído, pouco a pouco. 

Comecei cobrando 50 reais a sessão, e aí… 50 reais a sessão, e aí fui pegando pacientes... e, enfim, quando eu comecei a ouvir o estilo de vida de alguns, eu pensava: eu tô cobrando pouco. Porque eu trabalho muito, além de estar uma hora por semana conversando com a pessoa aqui, eu to lendo, eu to escrevendo relato de caso, eu to levando pra supervisão, enfim. Eu ia me aprimorando, eu faço uma formação em psicologia e em relações raciais lá na AMA. Então eu trabalho muito mais do que essa hora aqui, e por mais que seja muito maneiro eu ter a ideia de sair de universitário para trabalhar uma hora e ganhar cinquenta reais, é pouco - porque a gente não trabalha uma hora, a gente trabalha mais horas. 

E isso vai se escalando né, porque você começa a pagar outras coisas, tipo pagar aluguel, sem aluguel eu não trabalho. Pagar luz, sem luz eu não trabalho. Tem que pagar internet, sem internet eu não trabalho. Então tudo isso vai se somando, e eu comecei a pensar: cara, cinquenta reais ta muito pouco, vou subir esse preço. Só que pra mim sempre foi discutido, o preço. A gente discutia na hora ali, na primeira entrevista: como é que a gente vai fazer isso? E depende da pessoa, porque eu tenho vagas separadas pra valores sociais, de gente que me paga 30, gente que acabou de sair do DEGASE, gente que, enfim, não tem condição de pagar 100 reais numa sessão. Então, é foda, não é muito fácil não. Como é que eu vou aumentando o valor do meu trabalho? E essa é uma distinção muito importante de se fazer, que foi muito importante pra mim de fazer: que não é o meu valor, não é tipo, o preço da minha hora. É da hora do meu trabalho. Sabe? O valor do meu trabalho.

Flora: Tem alguma coisa que você gostaria de dizer pra quem está fazendo o curso agora?

Cássio: Leiam o primeiro capítulo de Condenados da Terra, do Fanon. Só o primeiro, o resto não precisa não. 

Sobre estar psicólogo, olha… acho que perder a expectativa, ou desconstruir a expectativa de que a psicologia vai explicar tudo que é do humano, porque não vai. Não tem psicanálise, não tem esquizoanálise, não tem existencialismo que dê conta de explicar, ainda. Você só vai construir, enfim, narrativas em torno de, e você vai trabalhar com elas, independente de onde você trabalhar. Enfim, não que elas percam seu propósito de ser por isso. Mas, pra mim, faz muito sentido ser psicólogo e ainda ser do candomblé e entender que é um conjunto de forças naturais, e é isso. 

Não subestimar, de forma alguma, as redes sociais, o impacto delas. Porque muita coisa está acontecendo no mundo hoje, e se a gente for se fixar nos livros de mil e novecentos, a gente vai ficar desatualizado. Se a nossa proposta ético-política-estética for outra, que não a que o capitalismo está propondo pro ser vivo, a gente vai precisar estar atento a tudo isso que a gente lê, que a gente produz, enfim, que tipo de clínica a gente tá construindo e que tipo de coisas a gente tá patologizando, estimulando de certa forma…. essa concepção de saudável, essa concepção de vida, essa concepção de morte… acho que tudo isso passa pela clínica, inevitavelmente, porque a gente está diante de pessoas, vivas, e de um mundo igualmente vivo. Então eu acho que é importante estar atento a quê psicologia, que clínica e que vida é essa que a gente tá colocando no mundo, né? Não subestimar o tiktok, e essas novas formas de produção de subjetividade. Não rejeitar, mas saber lidar com ele. Porque tem gente que passa por esse lugar da fuga, e começa a demonizar o tiktok, e o instagram e tal. Mas cara, as pessoas estão usando, seus pacientes estão usando, não tem como você não pensar sobre isso, porque tá aí, e tá aí com muito dinheiro por trás, muitos interesses. 

Não cair em rinha de linha teórica, porque todas elas produzem alguma coisa relevante, as apostas de mundo são diferentes, mas se a TCC se propõe a ser esse lugar na psicologia, cara, aprende com ela. Se a psicanálise se propõe a investigar relações mais profundas, entre, enfim, o inconsciente e a linguagem e tudo isso, lê um pouco, se entenda no que eles estão falando, sabe? Assim como todos os outros, gestalt-terapia, esquizoanálise, todas elas se propõe a alguma coisa no mundo, e na clínica. Acho que por mais que você tenha uma favorita - como eu acho em Fanon um lugar que eu aposto - não pára de ler, vai criticando, vai construindo o que você tá fazendo. Porque esse é um trabalho muito sério - e eu vejo isso, que eu tô na clínica há um ano e cinco meses - cara, esse é um trabalho muito sério. 

As pessoas realmente esperam que eu tenha um acolhimento, uma resposta, um lugar de conforto, e também de desconforto - sobretudo. As pessoas falam pra mim o que elas não falam pra família delas, pro companheiros delas, sabe? Então é uma coisa muito séria e que me tira do meu lugar. Não tem como ficar confortável nesse lugar, você tem que aprender a lidar com esse desconforto. É muito desconfortável estar na clínica. É muito bom, mas é muito desconfortável. 

Flora Dias 
Psicologia - UFRJ


Sobre a autora: Flora é artista e psicóloga em formação, compõe atualmente o GT de Pesquisa da Revista Fragmentos

  
O mais doido de estudar psicologia é levar o seu estudo para sua experiência de vida. Não que outros cursos não sejam assim também. (Nem imagino a "animada" vida de um burocrata nesse âmbito). No entanto, piadas à parte, só sinto que posso falar com propriedade nesse tema do que vivencio. E é bem doido.

Feita essa pequena introdução, vou agora ao que não sabia que queria falar. 

No início do mês, comecei uma aula cujo tema é a "Atenção" em seus mais diversos planos de estudo e vivência. Ao ler a ementa, imaginei que o sentido principal seria o de "cuidado", mas percebi que estava enviesado. Na verdade, apesar de também tocar neste assunto, o plano central inicial é o da atenção enquanto foco, ou seja, o "prestar atenção".

Em tempos como os nossos, estudar o tema da atenção é pedir para achar motivos para ficar preocupado (como se não já tivéssemos o suficiente). A chamada "economia da atenção", a qual simplificando obscenamente é a forma com a qual as empresas conseguem monetizar e capitalizar em cima da nossa atenção, está muitíssimo presente nas nossas vidas – principalmente na forma das redes sociais.

Mas não estou aqui para falar sobre isso. É um tema complexo, o qual muitas pessoas podem falar sobre muito melhor do que eu, inclusive. Menciono isso porque lembrei disso enquanto pensava o que iria escrever sobre aqui. Daí percebi que mudei a minha atenção para a aula, seus textos, suas avaliações, e todo o resto de preocupações que ela me trazia. (Não, ela não é um fardo, estou bem animado, apenas sou um ser humano e nós gostamos de reclamar).

A verdade é que o tema desta coluna que me sustenta neste instante surgiu quando pensei em falar sobre a "minipausa" que fiz ao não escrever nada nas últimas duas semanas sem motivo aparente. Seria por conta da virada do mês? Teria outubro algo contra mim? Acho que não. Mas não falarei sobre isso também.

O que acho é que temos desviado muito nossa atenção ultimamente por qualquer motivo – focar é muito escasso.

Ainda no clima da honestidade, comecei esta coluna que me sustenta, agora, neste instante como costumo começar quase tudo que faço, com um título: "intermitente". Essa palavra simplesmente me veio à cabeça. E quando dei um Google nela, a primeira coisa que apareceu foi um artigo falando de "trabalho intermitente", introduzido no Brasil na "Reforma" Trabalhista de 2017.

Ia falar sobre esse tema, mas assim como os outros temas mencionados aqui pensei que era melhor não – se bem que, pensando bem, eu meio que já falei deles. Falar sobre "não falar" é falar, não é? "Não pense em um elefante cor de rosa. Pensou.", é como sempre exemplificam. 

Acabei de perceber que escrevi o texto apresentando os temas ao inverso da ordem cronológica em que pensei. Ah... a desordem da atenção.


13 de outubro de 2021

Rafael Vasconcellos 

Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.

  

É f*da

Como aguentar

Se tentar (e tentar)

Está fora de moda


Por todo lado vejo dor

Estão enfermos ou será eu?

Bom, seja lá quem for

Todo mundo já perdeu


Perdemos sem jogar

Perdemos por tentar

A resposta para isso?

Perder-se no sumiço


Palavra por palavra

Caio sempre para cima

Buscando uma beleza rara

A beleza que não rima


Perder para se achar

Achar e se encontrar

Encontrar o que fazer

Sem perder não há criar


É, esquece. Não sei fazer música e tampouco poesia. Sem cadência, nem rimando, desejo apenas que sorria.



Itaipava, fev. - set. de 2021


22 de setembro de 2021

Rafael Vasconcellos 

Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.



Daqui de cima, já posso avistá-los. 
O bonde de Santa voltou e isso tanto nos ajudou!
Olhe ele, que gracinha. Morrendo de medo dos pombos que o contornam. 
Mas logo vem sua amiga, Laura, e mostra como são mais divertidos quando eles brincam. 
É, a chuva está apertando.
"Devo correr para tirar a roupa do varal e fechar as janelas" penso comigo mesmo, mas meu corpo é incapaz de mover-se. 
Como é forte o barulho da chuva e a janela nada mais me mostra da vida lá fora. 
Agora, vejo apenas o reflexo fragmentado de uma pessoa que pouco conheço. 
Nada sei dela, só sei que posso me ver. 
Apesar de nada saber sobre as coisas da natureza, meus antepassados ou como cheguei onde estou. Será que é isso que os bebês sentem ao ver seus reflexos no espelho? 

26 de agosto de 2021

Rafi Nobrega
Psicologia - UFRJ


Sobre processo de escrita: Este texto foi produzido a partir de uma oficina de escrita ministrada pelo Prof. João B. Ferreira durante a disciplina TCC I




  

Com o avanço da vacinação, reencontros presenciais tem ocorrido cada vez mais frequentemente entre pessoas que não se viam há, literalmente, anos.


É muito estranho rever pessoas depois de tanto tempo. Elas estão muito diferentes. Por mais que as reconheçamos e que entendamos que cada um lidou com esse momento da forma que foi possível, o estranhamento acontece – e está tudo bem.


Levando em conta que a maior parte do nosso convívio social foi e é através de janelas digitais, o encontro presencial ainda é algo que parece nem pertencer mais a esse mundo.


É claro, sejamos realistas, tem gente que nem usar máscara em locais públicos e coletivos tem usado, imagina exercer o distanciamento social. Acho sempre importante enfatizar isso quando escrevo sobre pandemia. Há pessoas que não vivem e não viveram na pandemia. Seja por necessidade ou por negação. Mas, fato é, que muita gente viveu e vive, isso não é ignorável.


E os impactos ainda hão de ser propriamente mensurados, pois eles nos cercam e nos constituem fortemente, se pararmos para ouvi-los e senti-los. Claro, são necessariamente dolorosos, então não se preocupe se não conseguir entrar em contato, cada um tem o seu tempo.


Temos, no entanto, como gosto de frisar de tempos em tempos, pessoas que se importam com a gente, que querem nosso bem e que possuímos o sentimento recíproco. Se descobrir e conhecer nossos amigos já foi uma experiência bacana, podemos encarar esse momento do "estranhamento", mencionado anteriormente, como uma forma de redescobri-los e criarmos novas conexões de identificação com eles. Todos nós precisamos de conexões nesse momento. Precisamos, também, de paciência. Quando nos reencontrarmos, alguns sedentos de conversas e de novidades, outros estarão tímidos, sem saber exatamente o que falar. Nossas habilidades sociais precisam também ser exercitadas, como qualquer outra que temos. Alguns tem mais facilidade, é natural.


Mas, ao mesmo tempo, podemos praticar a paciência como forma de carinho àqueles que amamos.


Nessa linha, penso que o verbo "redescobrir", presente inclusive no título, seja fundamental. O exercício de olhar ao redor e ressignificar as coisas é realmente algo da ordem do fantástico. Que consigamos redescobrir lugares, filmes, livros, viagens, memórias e, especialmente, pessoas.




15 de setembro de 2021

Rafael Vasconcellos 

Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.



Série da Fragmentos dedicada a conversar com quem se formou recentemente na psicologia da UFRJ para criar uma maior diálogo entre alunes e ex-alunes sobre caminhos feitos e caminhos possíveis.


João Pedro Peçanha se formou em março de 2021 e é mestrando no Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Durante sua graduação fez iniciação científica e estágio em clínica na DPA com a professora Martha Rezende Cardoso, além de ter sido extensionista do Circulando e monitor de Filosofia II.



Dri: O que fez você ficar interessado em fazer psicologia no início?


JP: Isso é uma pergunta que eu não tenho resposta até hoje direito, porque foi uma coisa que eu sempre tive um pouco de certeza. Tinha uma outra opção, que era fazer biologia marinha. Depois eu percebi que eu só gostava de mar e peixe mesmo e como profissão eu queria ser psicólogo. Mas eu acho que é a escuta mesmo, pra mim é muito importante isso de você dar lugar pra o que a pessoa tá falando. Parece uma besteira, para outras pessoas, mas quando a gente como profissional e estudioso do assunto vê que ouvir, dar lugar àquilo, dá um estatuto de… não consigo pensar a palavra agora, mas de que tá tudo bem, de que o sofrimento dela é legítimo. É legitimidade. Acho que até hoje isso é algo que me move muito. Essa apresentação, pensando na clínica, de cada caso, de cada sessão, cada sujeito ser de uma maneira, é uma forma também que eu enxergo a minha clínica, de não me engessar tanto. Porque quando a gente trabalha com uma teoria, a gente acaba se pautando nela de certa forma, mas não me travar completamente na minha teoria. Expandir o que pode vir a agregar, o que pode fazer com que a minha clínica seja a melhor possível. Que eu possa não só dar acolhimento, mas dar uma certa autonomia pro sujeito conseguir lidar com algumas questões que parecem, que são, muito desmobilizadoras. 


E acho que eu fui entendendo o porque da psicologia com o tempo, durante a própria graduação. Porque antes eu pensava uma coisa muito clínica, academia… Depois eu fui entendendo que psicologia não era só isso. Que tem muita política dentro da psicologia, e na própria clínica também, você trabalha com questões políticas, com questões econômicas. Então tem todo esse atravessamento que sempre me interessou também. Acho que essa maneira de tentar promover alguma mudança a partir do micro e sempre pensando nesse acolhimento, nessa promoção de saúde mental.

Dri: O que te interessava mais durante o curso em psicologia? O que te mobilizava mais? 


JP: Olha, eu acho que sempre gostei de psicanálise, mas o que mais me interessava no curso de psicologia, além da psicanálise, foram as matérias de fenomenologia, filosofia, epistemologia. Tiveram duas matérias de psicologia social que me pegaram bastante, que eu fiquei muito interessado. Alguns momentos das matérias de processos cognitivos, quando falam de aprendizagem, fazendo essa ponte também com a psicologia da educação, que foi uma matéria desse ciclo de psicologia social que me interessava bastante. Essas matérias foram as principais, que eu mais gostei de fazer. Acho que as que eu mais gostei de fazer  foi uma matéria do Camilo, acho que tópicos especiais em psicologia C, que foi sobre ciência e crítica feminista da idéia de deficiência e uma crítica marxista também, que era mais voltada pra epistemologia, e nossa, produção de subjetividades com a Fernanda Bruno também, marca todo mundo parece né? E psicossociologia, que eu descobri que infelizmente nem todo mundo teve da maneira que eu tive, eu fiz com a Mariana Pombo e foi uma das minhas matérias preferidas. Essas três eu poderia dizer que foram as matérias que mais me marcaram durante a graduação.


Dri: Durante o curso, você sempre pensou em fazer clínica? Quais eram suas expectativas pra quando você se formasse? Você sempre pensou em ir pro mestrado?


JP: Olha, eu entrei na faculdade com uma coisa muito idealizada: Piscologia é clínica, e a clínica vai ser a coisa mais linda do mundo. E eu converso muito com os meus amigos, acho que a gente devia falar mais como psicólogo clínico, e como psicanalista também, que a clínica é pesada, coloca a gente num lugar de muito desconforto e desmobiliza a gente também. O problema é que, não é exatamente um problema, mas demora um pouco a gente perceber que isso não vai passar nunca. E se passar é porque tem alguma coisa errada. Mas a gente vai começando a aprender a lidar com isso, a sustentar isso. Quando eu fui pra DPA, eu senti esse baque, e aquilo me mobilizou bastante, gerou muitas questões, eu fiquei bem desconcertado durante um tempo. Mas é isso, fui aprendendo a lidar, fui me engajando mais na minha própria especialização, estudando mais. Foi um momento também que eu acho que a terapia pessoal e o processo de análise foram fundamentais, você levar esse desconforto, esse lugar estranho pra o seu próprio lugar, pro seu lugar de ser escutado, de falar. 


Mas eu não cheguei com essa perspectiva de ir pro mestrado não, sinceramente. Para mim a clínica era uma das únicas possiblidades da psicologia, depois eu vi que tinha mil coisas, psicologia hospitalar, educação, neuropsicologia, psicologia do esporte, muita coisa, jurídica, nossa, muita coisa. Então eu comecei também a me questionar se, bem, se era realmente a clínica que eu ia querer seguir. Mas eu sempre quis dar aula, eu sempre quis ser professor, desde que entrei na faculdade. Então por mais que meu clamor e minha paixão pela pesquisa tenham surgido só a partir da iniciação científica, era já uma possibilidade ir pro mestrado para virar professor da universidade. Aí eu decidi, mais pra o final da faculdade, fazer um mestrado. Até porque minha orientadora da monografia, da iniciação científica, já tava puxando um pouco o meu pé pra isso: “não quer fazer não?”, e eu já tava assim, bom, vou tentar residência, porque é uma questão prática e dá uma bolsa legal, também vou tentar uma especialização, mais voltada pra a prática também. Mas eu passei pro mestrado, e aí deixei tudo de lado e coloquei pra frente o que eu acho que era o que eu sempre quis.

Dri: E como foi isso de se formar durante a pandemia, e resolver o que você ia fazer nesse momento meio caótico que a gente tá vivendo?

JP: Foi bem ruim, foi bem ruim. Porque as coisas parece que não se concretizaram direito, sabe? Porque o ritual de tirar foto na frente do IP, do certificado, de ir pra sala 2, sentar todo mundo, com meus amigos e pessoas próximas de mim pelo menos, fazendo o juramento, todo mundo no mesmo lugar. Acho que essa quebra desses rituais, desses encontros, desses momentos compartilhados presencialmente, ela atrapalhou e tornou tudo um pouco virtual. Bom, pra além da virtualidade da coisa mesmo, mas uma coisa meio virtual de você não conseguir pegar na mão. Fica uma coisa meio estranha, sinceramente. 


E foi difícil também essa parte da decisão porque tinha muita coisa pra priorizar né? Começar a atender não é nada fácil, você gasta muitas vezes mais dinheiro do que você ganha. Então tinha que pensar, uma residência vai me dar dinheiro, então eu tenho que enveredar por esse lado também. Ao mesmo tempo, a residência tinha toda a preocupação com a própria pandemia, na questão de salubridade também. Foi bem difícil sim, porque as coisas foram muito corridas também, com esses períodos mais compactos. Foi tudo muito pa-pum, o período começava, um mês depois você já tava no meio do período e já tava começando a aparecer avaliação final, ao mesmo tempo fazendo monografia e ainda atendendo na DPA, que depois voltou, depois de muito tempo. Foi um outro desafio. Então acho que foi bem complicado, eu me senti bem atropelado pelos períodos e pela rapidez e pela burocracia e ter que responder isso muito rápido para não perder prazo. Eu me senti bem assim, foi bem difícil, mas no final das contas deu tudo certo. Ainda bem.

Dri: E depois desse percurso, tem alguma coisa que você gostaria de deixar tanto pra a galera que tá entrando agora no curso de psicologia, quanto pra as pessoas que estão aí mais próximas de você, já no final do curso?

JP: Cara, acaba. A verdade é essa, acaba. E eu falo isso em dois sentidos né, porque a gente fica muito cansados às vezes. O ritmo da universidade de psicologia, dependendo de quantas matérias você pega num período, é uma carga horária extensa, e isso é muito difícil pra a maioria das pessoas, por diversos fatores. Então, toda legitimidade à pessoa que não tá mais aguentando mais, que não tá suportando, que tá sentindo um cansaço, uma estafa constante. Mas acaba gente, tem fim. E uma coisa que eu demorei um pouquinho pra captar quando eu entrei na faculdade, que obviamente em períodos online não dá pra fazer isso, mas é se engajem na faculdade, nas atividades da UFRJ, na sua atlética, na DPA, no CAFS, nos coletivos que aparecem, que lutam pelos próprios alunos. Eu demorei um bocado pra entender o papel desses lugares, dessas formações. E se engajem em tudo, vão nas festas, quando possível, vivam a faculdade, senta no Sujinho, senta no Asterius, fica no palácio, senta em qualquer lugar, senta no chão, porque depois dá tanta saudades. To um pouco emocionado, sinceramente. Porque dá muita saudades e acho que isso foi mais difícil também de me formar online porque eu não tive esse último dia sendo um aluno da graduação lá na UFRJ. Estar fazendo mestrado na UFRJ é um outro alívio pra mim, porque eu quero voltar lá como aluno de novo e quero viver de novo o campus, sabe? Então é isso, se engajem, participem da faculdade, participem do que vocês conseguirem, e do que não conseguirem tá tudo bem também. Não dá pra fazer tudo, não dá pra ler todos os textos, isso é uma coisa que eu queria que tivessem me dito, que eu pudesse ter ficado mais tranquilo. Não dá pra ler tudo, não dá pra fazer tudo. E apoiem seus amigos, procurem apoio deles e acho que é isso.
08 de setembro de 2021

Adriana Herz Domingues
Psicologia - UFRJ


Sobre a autora: Adriana é estudante de Psicologia, militante feminista e socialista, apaixonada por desenho.



  

O que é ser independente? Não ser dependente, duh. Certo, para tentar ir um pouquinho além disso, vamos ao dicionário (mais conhecido por seu outro nome, hoje em dia, Google): 


Subst. Feminino

1. Estado, condição, caráter do que ou de quem goza de autonomia, de liberdade com relação a alguém ou algo.

2. caráter daquilo ou daquele que não se deixa influenciar, que é imparcial; imparcialidade.


Muito bom esse negócio de dicionário, hein. Resposta dada, próximo problema. 


Por que estou pensando sobre independência? Fácil, este texto está sendo publicado na semana do Dia da Independência, quando o país parou para assistir o que ia acontecer com as manifestações(zinhas) que ocorreriam e ocorreram. Bem, sim, acertou – de fato, essa foi fácil. No entanto, como costumo fazer, não gosto de ir pela via óbvia. 


“Ui, que prepotência, cuidado com ele”. É, soou um pouco assim mesmo, mas explico. É claro que fazer uma análise sobre o que aconteceu no dia 07 de setembro de 2021, relacionando-o com o significado  (ou o suposto significado) do feriado seria interessantíssimo. Fala sério, eu leria sobre isso. Aposto, inclusive, que foi escrito por algum analista ou historiador de forma muito mais técnica e informativa que eu conseguiria.


Pensei, no entanto, num outro tipo de independência, que, na verdade, tem me cercado muito mais do que este que descrevi: a financeira. Aliás, não é ela que tem me cercado, mas a sua ausência – e, ainda mais, o desejo de alcançá-la. De jovens a adultos, e até mesmo idosos, o desalento financeiro e a falta de autonomia que ele gera têm sido mais companheiros do que arroz e feijão (literalmente).


Foi, então, que percebi que estes temas não se distanciam tanto. As manifestações, o feriado, a (não) independência financeira e seus significados estão emaranhados num “poço de agora” que é sufocante demais para ser totalmente absorvido. 


Que estamos em crise, sabemos – agora, compreender a sua dimensão espaço-temporal talvez seja o maior desafio para “analistas”. Para os técnicos, por conta das inúmeras informações macroscópicas. E para os viscerais, por conta da taquicardia e falta de ar de um mundo que nos priva até de respirar. 


Como “se sustentar” em meio a isso tudo? Não só financeiramente… de todas as formas. Como criar estruturas para suportar o que estamos passando? Com que material? Com que energia? Bem, sinto que, aqui, surge mais uma dimensão de “independência” – ou melhor, de falta dela. 


De qualquer forma, vamos conseguir. Não tenho certeza técnica, mas tenho certeza visceral.




08 de setembro de 2021

Rafael Vasconcellos 

Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.
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