Revista Fragmentos
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Olho ao redor,
Me olho,
Me vejo,
Me sinto.
Um fim para um começo,
ou um começo para um fim?
Indagações.

Liberdade,
Liberdade permanece,
Liberdade total,
Liberdade infinita.

O azul do meu quarto remete ao céu,
Azul...
Azul é minha cor favorita,
O favorito é escolha,
Remete tal qual para minha existência.

O que seria essa existência?
Existência que habita em mim,
As escolhas,
A desordem,
A angústia,
O sentir,
Existo.
11 de maio de 2021

Vitória Machado Barbosa I @vicsbarbosa 
Psicologia


Sobre autor (a/e): Meu nome é Vitória, 21, atualmente estou cursando o 7° período de psicologia. A arte sempre se fez presente em minha vida, e eu sempre me fiz presente nela.




(Arte: Álan Batista)
    
Fala sério, quem dorme hoje em dia? Sim, esse texto foi escrito durante a madrugada, como adivinhou? Fui irônico, essa foi fácil demais. Quero mesmo é saber se você que está lendo tem conseguido ir dormir cedo e acordar na hora certa...

Silêncio, é? Não quer responder, sei como é. A verdade é que Morfeu tem tido má vontade comigo, porque lhe tenho sido ingrato. Não vou em sua direção quando me chama, eu reluto. E o pior é que, uma vez em seus braços, é tão difícil sair... me sinto tão bem. Mas, vá lá, logo em seguida eu lá de novo relutando. Você faz isso também ou sou só eu? 

Queria poder ouvir suas respostas, isso é muito injusto. Só você pode saber o que eu penso, mas não sei o que passa na sua cabeça. Gosto de pensar em quantas pessoas estão acordadas enquanto também estou, pensando em loucuras como essa. É estranho, dormir, a gente se doa demais. E as mensagens que vêm são de uma só via.

Como este texto, na verdade. Como ler. Ou assistir. Ou criar. Pelo menos é o que dizem. Sim, os que criam dizem que criar é uma via de mão única. Mas será mesmo? Bom, vou-me indo. Morfeu me chama. Se você acha que
, na verdade, a via não só pode, como é de mão dupla, bem, então, diz aí.

Pela via, ele vai
Pela via, ele volta
Pela via, ele vai
Todavia, ele volta
Volta, volta, volta
Vai e volta, vai, vai
E foi

26 de maio de 2021

Rafael Vasconcellos 

Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.

Eu cresci ouvindo para não usar a minha roupa mais bonita, porque ela era roupa para os dias especiais. Cresci vendo louças e toalhas lindas que nunca usamos ao longo dos meus vinte anos, porque elas devem ser guardadas para "ocasiões" cujos termos não são muito bem definidos. E também para só ir comer aquele lanche mais gostoso quando existir algo a ser comemorado, hoje pode ser algo mais simples.

Hoje sempre pode ser um pouco menos. Melhor ainda se for o mais básico possível. O dia a dia merece as roupas mais beges, o prato com a borda lascada e a toalha de mesa manchada. Hoje eu não preciso desse doce de carrocinha, que custa tão pouco - mas não, não preciso, não estou merecendo. Afinal, que coisa espetacular eu fiz hoje para comprar um churros? Oh não, fica para outro dia. 

Hoje também olhei para meus vestidos favoritos. Há um ano ou mais não uso o que fica melhor no meu corpo, mas quando uso... Me sinto uma deusa. Não preciso me sentir uma deusa hoje, posso usar só jeans e camiseta. Não há nada de excepcional sobre hoje.

O problema é que eu comprei uma jaqueta prateada linda quando fiz 18 anos. De fato, um evento memorável em uma vida! Porém, quando quis usá-la pela segunda vez aos 19 - para um evento de gala, é evidente -, ela estava descascando, ressecada pela falta de uso. Ah, e de tanto que eu esperei por um dia mais incrível para ir comer aquele hambúrguer vegetariano, a loja que tinha perto de casa fechou. No dia que eu quis me recompensar por qualquer feito nobre o suficiente indo até lá, vi apenas uma porta fechada.

E os adesivos mais bonitos do caderno da escola? Perderam a cola porque eu nunca usei. Fiquei com pena de usar em qualquer lugar sem importância, decorar um papel qualquer que pudesse se perder. Fiquei com pena de gastar as canetinhas brilhosas no dia-a-dia até que elas secaram ainda pela metade. 

Eu cresci acreditando que eu precisava só do mínimo de água, que só merecemos aquilo que nos é essencial e que só é especial aquilo cuja razão de ser é deslumbrante. Deixei secarem as canetinhas e os adesivos e a jaqueta, me conformei com a secura. Esperei, esperei e sempre esperei pelos dias maiores, melhores, mais reluzentes. 

Minha vida sempre vai começar amanhã e eu só consigo viver no hoje. "Geleia ontem e geleia amanhã, nunca geleia hoje". Aprendi cedo a lição da Rainha Branca de Carroll. Mas e agora, quando o hoje se estende ao infinito? E agora, que o ontem parece cada vez mais distante e o amanhã não possui previsão de chegada? Dentro de casa, sem poder mesmo ir para o tal do restaurante que estou há três anos querendo conhecer. Mesmo que eu vista meu vestido mais bonito, só eu vou ver. Já não tenho minhas canetinhas para colorir meus dias. Eu espero, espero, espero.

Junho de 2020

Gabi Neves | @gabinevesrs 
Psicologia - UFRJ


Sobre autor (a/e):: Escrevo desde que me entendo por gente, se escrever nem gente eu sou. Ou, menos dramaticamente, eu elaboro esse mundo bagunçado quando posso ler, escrever, cantar ou atuar sobre ele. Esse texto é uma alternância entre momentos de nostalgia e outros de "esse negócio de autoconhecimento dá trabalho".

(Arte: Álan Batista)    


Coluna: Suporte vertical, cilíndrico ou quase cilíndrico, usado como ornato em edificações e monumentos ou como elemento de sustentação para partes elevadas de um edifício, abóbadas, arcos etc. Ela sustenta, ela estrutura, ela suporta.

A coluna, no meio jornalístico, é central para que o veículo traga diversidade às opiniões. No entanto, para além de fatos jornalísticos ou reportagens, a coluna traz a um veículo de comunicação uma nova forma de relação: do leitor com o veículo; do escritor com o leitor; do veículo com o escritor – reconfigura. Traz uma nova cara, uma nova língua, um novo tato – um novo rosto por inteiro. Um rosto sustentado pela coluna daquele corpo que ali se constitui.

Coluna vertebral. Sustenta, estrutura e suporta tudo que o corpo precisa fazer. Ela nos segura e ela nos dá forma. Ela nos auxilia e ela impede. Sobre ela, repousa o rosto. Pensante e sentido, o rosto que observa. Um olhar para novas oportunidades – ou até antigas, também. Como disse o saudoso Calligaris: "A coluna foi o que deu graça a minha vida". Isso porque ela nos faz olhar ao redor e nos perguntar, o que há de interessante? O que me interessa? O que interessa o outro? Para o bem e para o mal. Falar do que faz bem e do que faz mal – ambas para fazer bem. Ela sustenta, ela estrutura e, principalmente, ela suporta. Ela dá suporte.

Mas ela dói também, quando não cuidada. Toda coluna precisa de cuidado e de atenção. Todos precisamos. Cuidemos de todas as colunas.


Rafael é carioca, clínico em eterna formação, ex-tenor no “SVAC” e mestrando em psicologia pela UFRJ. Filósofo de botequim e sofredor pelo Botafogo, escreve como hobby para ajudar a respirar. Acredita que na escrita de ficção como uma arma poderosíssima de comunicação que deveria ter mais espaço nos ambientes acadêmicos.

Seu Gari,

Passei o primeiro ano de faculdade imersa na euforia da novidade, da rotina universitária cheia de contrastes com minha antiga vida escolar. Eu saltava do meu ônibus voraz por entrar no campus, ainda testando se valia mais a pena este ou aquele trajeto, entrar pelo portão principal, ou por aquele perto do shopping, ou aquele que eu passei meses sem nem saber que dava dentro da minha faculdade.

Por volta de setembro, tudo ficou um pouco mais sereno. Não era mais meu primeiro período, a emoção de caloura deu lugar a uma rotina diária. E eu passei a reparar mais no caminho. Na passagem subterrânea que pede que as bicicletas sejam empurradas ao invés de pilotadas nos corredores cheios de eco abaixo da avenida expressa. Na barraquinha de vende xuxinhas e presilhas de cabelo logo na rampa saindo da passagem. Nos grafites, coloridos ou não, na parede da editora da universidade. No muro cinza preenchido de plantas que o tornam verde.

E assim, na rua do muro, um dia eu prestei atenção no gari. Um senhor, imagino que com seus 60 a 65 anos, de pele escura e bigode bem clarinho. Ele deve ter no máximo cinco centímetros a mais que eu, levemente encurvado. Não sei se é careca, nunca o vi sem o boné laranja da prefeitura.

A calçada é estreita e a rua é longa. Às sete e meia da manhã, por vezes ele era a única pessoa à minha frente, ele e a caçamba laranja estreitando ainda mais a via. Depois que eu reparei nele, se tornou constrangedor simplesmente passar ao seu lado em silêncio, olhando para frente ou o nada. Até o dia que eu disse bom dia. Às vezes os seguranças da passagem subterrânea ignoram quando eu falo, outras vezes eles respondem com um aceno de cabeça. O gari era tão senhor e eu falei tão timidamente que nem sabia se teria resposta. Então, veio o seguinte:"Bom dia princesa, uma boa aula!"

Eu sorri de volta (não sei se de volta, na verdade não sei se ele sorriu por baixo do bigode espesso). No dia seguinte, dei bom dia outra vez, e novamente recebi a bendição do seu gari, sempre desejando bom dia e boa aula. O primeiro bom dia foi em outubro, e quase todos os dias eu cumprimentava meu novo amigo de rua. Geralmente eu o encontrava exatamente no mesmo ponto da calçada, às vezes ele estava varrendo as folhas do outro lado da rua e eu precisava projetar mais o bom dia para alcançá-lo. Em retorno, ele me desejava bom dia e boa aula.

O fim de semestre começou a apertar, e eu andava com pressa para chegar, fazendo uma pausa mais curta para a cortesia diária. Apesar disso, eu sempre acabava percorrendo o fim da calçada mais feliz depois da benção à aula do dia. Eu até brincava com ele no dia das aulas chatas, naquela manhã seria difícil a boa aula.

Em dezembro, eu estava com um pé nas férias e outro nas provas. Passei a ir duas a três vezes por semana pro campus, indo fazer prova e voltar. Seu Gari mudou o bordão para "Bom dia princesa, um bom dia e uma boa prova!". Eu agradecia, às vezes dizendo que ia precisar mesmo. Num dia seguinte, ele perguntou se eu fui bem. "Fui sim! Bom dia e bom trabalho pra você".

Não percebi que era meu último dia antes das férias e esqueci de dar feliz Natal. Em março, no retorno, fiz questão de entrar pelo portão do muro no primeiro dia para dar bom dia ao meu colega, e lá o encontrei novamente, com o bigode ainda mais grosso. Nem sempre essa é a melhor entrada, em alguns dias tenho aula em um prédio que é mais perto da entrada da editora. Não no segundo semestre, que eu ia todo dia pro meu instituto. Já no terceiro eu tinha uns dois dias nesse outro prédio, então ficava sem o bom dia por estar sempre em cima da hora.

Teve uma semana em que eu faltei nos dias que eu passaria pelo muro verde. Depois de uma semana sem o desejo de boa aula, passei sonolenta pela calçada estreita e procurei pelo Seu Gari. Não achei. Tinha uma mulher com o uniforme da prefeitura varrendo do outro lado da rua, e nada do senhorzinho que me fazia companhia no sol fraco da manhã.

Eventualmente ele reapareceu, e voltei a sorrir para ele apesar do sono de uma estudante que perdeu o gás inicial da graduação. Perguntei se ele tinha ido bem de férias, acho que ele sorriu um pouco, pelo menos com os olhos. Eu dava bom dia, ele me dizia "boa aula!". Nossa rotina ficou assim por um tempo, sempre a mesma vassoura, a mesma caçamba, o mesmo boné, no máximo uma variação entre mangas laranjas longas ou curtas. E eu com minha mochila nas costas e uma roupa que, por vezes, beirava a estética do pijama.

Aconteceu de novo, eu cheguei na rua da nossa saudação habitual e ele não estava. Olhei para o outro lado da rua, nada. Mas também, não tinha ninguém. No dia seguinte a primeira aula era no prédio perto da editora. No outro, eu vi um sujeito diferente uniformizado em frente à caçamba, fazendo dupla com o moço do caminhão de lixo. E em todos os outros desde então, aquela mulher que apareceu nas férias parece ter ocupado o lugar dele.

Seu Gari, espero que você tenha aposentado. Você é um senhor, não cabe mais ficar o dia inteiro em pé. Sabe lá que horas você saía de casa pra chegar lá tão cedo. Sete e meia da manhã eu chegava na faculdade e você já estava lá, até nos dias que eu chegava onze da manhã lá estava você em pé, nunca te vi sentado para descansar. Agora, estou no período de avaliações e não tenho ninguém para me desejar boa prova. Eu voltei a andar silenciosamente pela rua do muro verde. Tentei estabelecer contato visual com a mulher nova, mas não deu muito certo. Logo agora você parou de trabalhar ali na rua, Seu Gari. Eu estava querendo perguntar seu nome.

2019, revisitado em 2021

Gabi Neves | @gabinevesrs 
Psicologia - UFRJ


Sobre autor (a/e): Sou a Gabi Neves, faço parte da Fragmentos desde o início :) Escrever sempre foi o meu refúgio e, agora, reler o que eu escrevia sobre a vida de antes, "o antigo normal", me deixa viajar no tempo com gratidão pelo que vivi quando achava que sabia o que esperar da vida. Continuo escrevendo e reescrevendo, criando sentidos para mim em meio ao caos.

Apesar de muito procurar, o Senhor X nunca encontrou uma história que valesse a pena ser contada. Ou ainda, nunca encontrou uma história que ele fosse capaz de contar. Desde pequeno convenceu-se de sua genialidade narrativa. Até entrar na universidade, viveu a surrar pelos cantos os resumos de contos e causos que criara. Caso juntasse coragem para escrevê-los, tinha certeza, ganharia prêmios inimagináveis. O Jabuti era pouco. O então jovem Senhor X sabia... estava pronto para receber uma Lebre. Só que as histórias prometidas jamais foram escritas. Nem no papel, na máquina de escrever ou no computador. Sequer num bloco de notas o Senhor X era capaz de registrar suas pequenas historietas. Passava dias resmungando e regurgitando…. Sobre uma doença transmitida pelos aparelhos eletrônicos que forçaria toda a humanidade a abandonar a tecnologia que sustentava o seu planeta, sobre uma mulher deprimida que contrata um assassino particular para matá-la e se esquece, sobre a sala do lepidopterologista cleptomaníaco do Museu Nacional e sua fascinação por isqueiros, sobre o romancista que não sabia escrever romances e sobre o pai e a filha que fogem do país após atropelar todos os pombos da cidade. Muitas ideias permeavam a mente do Senhor X, mas nenhuma se transformou no texto grandioso que lhe granjearia os prêmios jabutis, tartarugas e coelhos. Verdade seja dita, nenhum deles jamais tinha ganhado a forma de palavras, grandes ou pequenas. 

Bastava sentar-se à mesa ou no telhado do seu prédio, tomado pela decisão de finalmente ser reconhecido como o gênio que era, que suas ideias escapuliam. Elas abriam as pequenas portinhas localizadas nas laterais da estrutura craniana do Senhor X, corriqueiramente chamadas de orelhas, e jogavam-se do alto do precipício de 1,58m. Às vezes, até conseguia rascunhar uma folha ou duas, muito mal e porcamente. Mas rapidamente se cansava do exercício de escritura e em alguns dias toda sua pretensão era esquecida frente ao esforço da construção textual, da revisão gramatical e, acima de tudo, da possibilidade iminente de fracasso. Mesmo depois de desistir, o Senhor X continuava mentindo para si. Por algum (breve) tempo se convencia de que ao retornar àqueles escritos iniciais, os transformaria na sua Grande Obra. Só que até essas promessas calorosas eram rapidamente esquecidas. Ao Senhor X faltava perseverança e coragem. Os elogios recebidos na juventude eram suficientes. Ele era o devir do gênio, isso bastava. 

No entanto, tudo aquilo que o Senhor X não alcançava nos seus sonhos, lhe era retribuído em sortes pequenas. Sortes pequenas para peixes pequenos. Nos seus pacotes de figurinha sempre recebia os adesivos raros, prateados e holográficos, que davam inveja a toda a criançada. O seu palito de picolé era sempre o premiado. Já se tornara comum ganhar dos velhinhos no Bingo de sua cidade natal e levar para casa quatro frangos, dois vinhos, uma caixa de bombons e alguns panos de prato. Também tinha uma vocação para a raspadinha, quando jogava dificilmente

perdia dinheiro, e para os sorteios da escola, com ajuda dos quais começara sua pequena biblioteca. Apesar de todos os indícios, demorou muito a se sentir um cara sortudo. Porque se suas vitórias pequenas eram constantes, as graúdas raramente vinham. Jamais ganhará no pôquer, seu horóscopo costumava ser pessimista e tivera um único namorado em toda a sua vida, e ele o traíra repetidas vezes. Não que o Senhor X se importasse muito. Gênios têm vidas trágicas. 

À primeira vista, mesmo aos cinquenta e muitos anos, sua vida continuava absurdamente comum. O padrão para um homem de classe média. Tinha muitas coisas e tantas outras faltavam. Não passava fome, mas comia de forma bastante simples, e o seu maior luxo eram as garrafas de vinho italiano que comprara na promoção por sessenta reais há uns dois anos. Trocara de carro recentemente, viajava durante vinte dias uma vez por ano e gastava a maior parte do seu dinheiro em cursos online, livros e cadernos que jamais completaria. Pelo menos não fazia nenhum trabalho repetitivo, nem andava por aí de terno no calor úmido do Rio de Janeiro. E era se convencendo de toda a sua potência que o Senhor X se consolava nos dias mais tristes. 

De forma geral, levava uma vida pacata e solitária. Ninguém sabia exatamente o que ele fazia, mas a verdade é que ninguém sequer se perguntava. Caso, anos mais tarde, entrevistassem seus vizinhos de apartamento, estes jamais imaginariam que existia ali um projeto de gênio. Quem sabe um ou outro amigo querido de infância ainda guardasse consigo essa pequena fantasia. No fim, o Senhor X era alguém profundamente irrelevante. E, se se distinguia dos outros seres humanos, isso se dava única e exclusivamente à pequena sorte com a qual nascera. Pois o Senhor X ganhara do destino a possibilidade de viver como quisesse, conquanto se resguardasse de qualquer grande ambição. Embora tivesse recebido muitos sinais ao longo de sua juventude, só entendeu sua fortuna no dia que a mãe morreu. No final das contas, a lição sequer tinha sido muito ruim. 

Naquela noite, subiam os dois, o Senhor X e Sua Mãe, pela rua mal-iluminada. Era um verão especialmente quente e todos pareciam descansar em suas casas depois de uma longa tarde na praia. O som dos ventiladores de teto inundava a rua e se misturava ao canto das cigarras, especialmente inquietas naquela temporada. Nem o Senhor X nem a Senhora-Sua-Mãe diziam qualquer coisa. Ambos subiam a rua lentamente, arfando e suando com um calor tão intenso que grudava o suor à pele. O objetivo da dupla era bem simples, comprar algumas cervejas no bar da esquina e trazê-las de volta, ladeira à baixo, o mais rápido que pudessem. 

Caminhavam com muito esforço e alguma preguiça pela rua escura, descuidada e quente. Os postes praticamente não funcionavam, a calçada era inexistente e o calor impedia qualquer possibilidade de foco. Por muitos anos depois daquela noite, o Senhor X se perguntou o que teria acontecido se a Senhora Sua Mãe não fosse tão baixa, ou se na calçada coubessem os dois, ainda, se algo teria mudado caso

as luzes artificiais amarelas funcionassem e refletissem o prateado dos seus cabelos, criando uma lanterna natural, como acontecia de modo especialmente encantador de Dezembro a Abril. Mas nada disso acontecera. E embora pudesse gastar dias imaginando outra vida, nada iria apagar a memória do corpo de sua mãe estirado, como geleia coberta de cerveja, debaixo das rodas do micro-ônibus que ligava o seu bairro à principal avenida da cidade. 

O Senhor X não gostava dos retornos involuntários que fazia naquela noite. Sua repulsa, afirmava, vinha menos do amor filial e mais do asco causado pela impressão do corpo meio atropelado, meio derretido pelo calor, espalhado e grudado pelo asfalto da rua velha e escura. Mas, embora frequentemente fugisse dos registros ópticos daquele encontro fatal entre o micro-ônibus do bairro marginal e a pequena Senhora de cabelos grisalhos, jamais conseguia ignorar o prazer advindo de sua leitura. Para o ego de gênio do Senhor X, o obituário de sua mãe era como um pequeno poema bem feito. Uma linguagem prazerosa e compreensível. 

A cada vez que contava essa história, para si ou para os outros, criava caminhos diferentes para a sua descoberta. No entanto, no fim das contas, tudo que conseguia recobrar com clareza sobre aquela época, além da sensação de vazio na casa e das lágrimas dos demais familiares, era de ler e reler o pequenino poema mortuário dedicado a sua mãe que fora publicado em uma página esquecida de jornal. Primeiro, a simplicidade das palavras chamou sua atenção. Depois, a disposição do texto e a ilustração despropositada de um cemitério - considerando a causa mortis, um enterro teria sido impossível. Finalmente, fixou-se nos números. Por alguma razão inexplicável, toda a sua combinação parecia muito auspiciosa. Todos os números eram menores que sessenta, nenhum deles se repetia e resistia neles qualquer coisa de místico. 

Quando o Senhor X começou a brincar com as possíveis combinações dos algarismos arábicos presentes no poema-obituário de sua mãe, o médico que o atendeu, para preocupação de toda família, diagnosticou-o com estresse pós-traumático. Mas o menino, que nunca fora bom em matemática e que só queria saber de inventar histórias, pela primeira vez em sua vida, passava o dia a rasurar o papel com linhas e linhas de códigos e mais códigos. Passou semanas nesse exercício, como se buscasse encontrar algum segredo, uma senha, que precisava estar ali. Depois de alguns dias, frustrado com seus esforços repetitivos e atordoado com a preocupação do pai, desistiu. Mas jamais conseguiu esquecer o seu problema. Volta-e-meia declamava para si o pequeno texto de seis linhas, escrito por algum profissional mal pago, mas competente. Ao dormir, sonhava com os seis números ululantes que pulavam da página de jornal amarelada, anunciando a data de morte e do velório da Senhora Sua Mãe. Por mais que o tempo passasse, o Senhor X não era capaz de atribuir qualquer sentido àqueles dois conjuntos numéricos. Mas também não conseguia esquecê-los. Os números fluíam pela sua

mente todos os dias. Eram repetidos religiosamente depois de acordar e antes de dormir. Passou a usá-los como a senha do email, do cadeado da bicicleta e como usuário de redes sociais. A sua resistência na memória, aliás, era o principal motivo que fazia o Senhor X acreditar que não deveria esquecê-los. Que neles existia algo que valia a pena. 

Alguns poucos anos depois, o Senhor X, que já não era o jovem Senhor X, mas apenas o recentemente adulto Senhor X, andava pelas ruas do centro da cidade a caminho da faculdade quando percebeu que em frente ao ponto de ônibus no qual parava todos os dias, havia uma casa lotérica. Lotérica Mariposa, mais precisamente. Por algum motivo, o Senhor X jamais havia reparado naquela pequena loja. Não que ela chamasse qualquer atenção particular. Era pequena, nem feia, nem bonita, com um pórtico diminuto no qual nem ele, com meros 1,58m, era capaz de passar confortavelmente. O mais esquisto para o Senhor X, todavia, não eram as dimensões da loja, seu nome pouco usual, ou fato de nunca ter reparado nela. O aspecto que fez até os cabelos atrás das suas orelhas se levatarem era a existência de uma Lotérica, no centro de uma movimentada cidade, não ter uma fila na porta durante o horário do almoço. O Senhor X parou em frente a fachada da Lotérica Mariposa por alguns instantes, checou o relógio para calcular quanto tempo tinha sobrando, deu de ombros e entrou. 

Por dentro, assim como por fora, o recinto era absurdamente comum, apesar de excessivamente pequeno. Era tão rotineiro que não fazia sentido a completa ausência de fregueses no local. O Senhor X deu os dois passos que cabiam no espaço da Loja e, em um movimento quase automático, pegou uma cartela de jogo da Mega-Sena. Com a caneta presa no balcão, riscou, sem pensar muito, três jogos de seis números. O primeiro deles, logo percebeu, eram os mesmos que atravessavam a sua cabeça religiosamente. Aqueles do poema-obituário de sua mãe. A qualquer outra pessoa, tal situação teria despertado algum calafrio, no mínimo um certo estranhamento. O lugar era esquisito e os números estavam envolvidos em morte e tinta de impressão. Mas o Senhor X sorriu, contente com a sua própria peculiaridade, que certamente seria indício de genialidade. Satisfeito, pagou seu jogo, trocou uma ou duas cordialidades com a caixa e voltou ao seu dia medíocre. 

O Senhor X queria ter podido se surpreender com os resultados da sua aposta, queria mas não podia. Pois, tanto as Lotéricas Mariposa, quanto a automaticidade de seu primeiro jogo, fizeram com que durante todo o fatídico dia e ao longo os seguintes, uma certeza profunda e concreta da vitória brotassem do seu fígado e se espalhasse por todos os órgãos. O prêmio recebido em dinheiro não era o máximo, não acertara os seis números, mas também não era ruim. 

Durante algum tempo, o Senhor X se acalentou com a sensação de que algo lhe fora dado pela sua obsessão filial. Mas, apesar desse senso de satisfação, parte

daquela sensação vitoriosa se transformara em um incômodo crescente, que se expandia todos os dias, e chegava ao ápice quando o recém adulto Senhor X parava no ponto de ônibus e encarava a pequena e esquisita Lotérica Mariposa. 

Quando conversou sobre o senso de incompletude com o namorado, que logo deixaria de ser namorado, não por escolha do Senhor X, ele lhe disse que não devia pensar demais na Lotérica e no obituário. Disse também que o incômodo do seu querido Senhor X nada tinha a ver com a sorte de seus pequenos números, que ficasse satisfeito com essa parte da vida. O desconforto vinha de uma melancolia, a melancolia do trabalho e o trabalho entristecia porque era medíocre. Naquela noite, deitado na cama, o Senhor X pensou nas palavras do namorado, que logo deixaria de ser namorado, e chegou a conclusão que concordava com quase tudo. Realmente, seu trabalho era medíocre. Mas, sempre soubera disso. Aliás, o escolhera precisamente por essa razão. Estabilidade, bom salário, pouco esforço e tempo. Tempo em demasia para escrever. Não que as palavras algum dia tenham efetivamente vindo, mas era bom estar preparado. 

O Senhor X tinha certeza de todas essas coisas, e justamente por isso, apesar de toda melancolia rotineira, sabia que estava mesmo incomodado era com os resultados da Mega-Sena. Sem conseguir dormir, resolveu consultar a seção de obituários do jornal pela primeira vez em alguns anos. Era incrível a quantidade de mortes comuns que povoavam aquela pequena página da internet. Considerando o número de habitantes da cidade, o Senhor X esperava que algo de interessante ocorresse, pelo menos no fim da vida. Só que nem todos podiam se transformar em geléia de corpo e cerveja grudados no chão de um bairro em noites quentes. Apesar disso, volta e meia apareciam alguns acidentes curiosos, líricos até. Eletrocutada pela torradeira, afogado pelos livros da estante, hemorragia provocada por cartas de tarô. Sempre que eventos literários apareciam, por força do hábito, o Senhor X contava o número de linhas e o de algarismos impressos. Eram ainda mais raros os que seguiam o padrão da Senhora Sua Mãe, seis números e seis linhas. Esses eram os preferidos do Senhor X, mortes estranhas e harmonia numérica. Ele os releu, memorizou, repetiu e, eventualmente, passou a colecionar. 

Da coleção ao jogo era apenas um passo, e foi assim que o Senhor X gradativamente abandonou sua profissão para se tornar um apostador profissional. Passava os finais de semana caçando perfis líricos nas seções de obituários de jornal, selecionava os dois preferidos, repetia os números algumas vezes, para confirmar a sua sorte, e na segunda-feira seguinte direcionava-se à Lotérica Mariposa e montava seu jogo. Além dos dois conjuntos novos, sempre repetia a sua sequência favorita, que aprendera no poema-mortuário da mãe. Embora nunca tenha acertado todos os seis dígitos, sempre ganhava alguma coisa. Coisa mais que suficiente para uma vida confortável e despreocupada.

Apesar do passar dos anos, o incômodo no Senhor X persistia, quase como uma força estranha que morava dentro do seu corpo. O mal-estar variava segundo o momento do dia e semana, mas definitivamente era pior quando ia fazer sua aposta Segunda-Feira de manhã. Verdade seja dita, com o tempo se acostumou com a dor no fígado, como alguém se habitua com uma infestação de formigas em casa, e por mais incômodo que pudesse ser, já se tornara habitual ignorar ou massacrar alguns insetos vez ou outra. Talvez, tenha sido essa sensação de familiaridade com o incômodo que tenha tornado toda a situação tão perigosa. 

O Senhor X já tinha se tornado o homem adulto, às vésperas da crise de meia-idade, quando finalmente ganhou um prêmio inteiro da Mega-Sena. Quando a notícia chegou, foi de todo surpreendente. Havia algo de confortável em ganhar , mas sempre saber exatamente quando e como. O mais chocante de tudo talvez tenha sido o número vitorioso. Desde a juventude, o projeto de gênio que era o Senhor X, insistira em apostar na morte da sua mãe como um hábito. Já ganhara um prêmio com aqueles pequenos números, e da mesma forma que confiava no seu sucesso, tinha certeza de que aquele conjunto de seis algarismos nunca mais lhe daria nada. Além, é claro, do ensinamento fantasmagórico, dado pela Senhora Sua Mãe, sobre como usar poemas para vencer jogos e viver confortavelmente. Afinal, o que mais uma mãe poderia desejar a um filho? Mas os dígitos que viu impressos indicando o premiado eram precisamente as seis estrelas de sua obsessão. 

O enorme valor em dinheiro da Mega-Sena não foi suficiente para acalmar as dores do seu incômodo naquela tarde. O Senhor X passou o dia, imensamente quente e massante, se remexendo de um lado pro outro, nada fazia sentido. Sabia que não podia, nem deveria ter ganhado daquela forma. Pensou em ligar para os responsáveis pela premiação e perguntar se tinha certeza de que a folha tinha sido impressa corretamente. No seu âmago ele sabia que não. Quando a noite chegou, a dor no fígado era tão insuportável e a confusão mental tão intensa que o Senhor X saiu rua a fora, procurando cervejas frescas. Durante todo o trajeto permaneceu inquieto, os ouvidos atentos, os pés bem ancorados na calçada estreita, a mão agarrada na lanterna. Algo lhe dizia que ia morrer. Algo não. A dor do fígado. A dor do fígado, o incômodo tão antigo quanto as vitórias na Mega-Sena, avisava que iria morrer, como vingança, nas mãos de sua mãe. O Senhor X não sabia exatamente o percurso que o levara a concluir que ia morrer, que essa morte era vingativa, e que a vingança era materna. Racionalmente, até ele sabia que nada daquilo fazia sentido algum. Mas, nem chegar em casa vivo, nem beber as cervejas quentes no ar condicionado, nem ter recebido um prêmio milionário, nada disso acalentava de qualquer maneira a impressão da morte ou a dor de fígado. 

***

Comunicamos com pesar o falecimento de Senhor X, conhecido pela sua genialidade com pequenos números e pelo fracasso na carreira literária, aos XX anos. A morte foi o levantar de asas de uma mariposa alojada em seu fígado. Aos que desejam prestar condolências, deverão se dirigir diretamente ao enterro, já que as condições do corpo impedem um velório adequado. O sepultamento será no dia xx/xx/xx, às XX: XX horas, no local.
02 de abril de 2020

Alegria 


Alegria: "O homem dos pequenos números" é conto meio bobo meio sério. Em alguma medida fala sobre os meus próprios medos e sobre a minha visão do conceito de artista. Mas, da mesma forma, é sobre tudo que não sou e não sei. Não sei, talvez seja que nem piada, depois de explicar fica chato.

Estava meio-escuro, mas esta criança conseguia enxergar o batente da porta entre-aberta e seu fraco contraste com a meia-luz provinda daquele silencioso corredor do lado de fora...Estava meio-escuro, mas esta criança conseguia enxergar os dedos do pé, bolinhas minúsculas e macias, era um pezinho pouco pisado ainda. Sua visão era composta por inúmeras camadas penumbrosas, que cobriam cada qual uma escuridão singular. Alguns objetos desvaneciam-se nessa zona indeterminada, no encontro sinistro entre luz e trevas, as coisas não eram nem uma coisa nem outra, habitavam o limiar da forma, como se não houvesse nenhum limite capaz de contê-los neles mesmos. Sentiu que a escuridão absoluta era o número 1 perfeito, e que por isso a morte é preta, é o momento de se perder absolutamente nas coisas, de perder os contornos que delimitam essa coisa que está lá dentro. Obviamente teve medo dessa sensação que lhe apertava a barriga, temia se perder e morrer ou morrer e se perder; a mesma sensação que lhe abatera quando se perdeu de sua mãe no mercado. Neste momento, um calafrio subiu sob sua pele e a fez estremecer, sentindo tão novinha o bafo gélido da Dona Morte.

Mas era apenas uma simples madrugada e ela era só uma criança que não conseguia cair no sono nesta casa de parente. Sente que a mobília a rejeita e que se ousasse abrir qualquer armário, cairia num buraco interminável. 

Todos dormiam e certamente viviam profundamente os seus sonhos proibidos. Mas para ela esses corpos inertes pareciam mortos-vivos. Era como aquele velho no caixão: era o seu avô, mas não era o seu avô, pois ele não estava ali, sorrindo, roubando no dominó e

dizendo que conhecia seus adversários “desde outros carnavais”. Quando ele dizia isso a - sua mais jovem adversária - ela intrigava-se levemente por não captar-lhe o sentido com clareza, no entanto lhe apetecia provar desse sabor agridoce de quando se morde a dubiedade dos sentidos. “Te conheço desde outros carnavais…”. Chegou a pensar que ele era um bruxo e que a conhecia antes dela mesma se conhecer. 

Ela jazia em um colchão no chão, com os olhos espantados e atentos ao silêncio fugaz que fazia entre os intervalos da gota d’água caindo sem querer querendo em direção a pia, ressoando no vácuo a metálica queda aquosa, e depois o tic-tac tenebroso do relógio! Tentava inútilmente fugir daquele momento e voltar as alegrias infantis que tivera naquela tarde, em que fora polícia e ladrão e um elefantinho colorido tudo no mesmo dia! Brincadeirinhas que sentia como se fossem a coisa mais séria do mundo e a única coisa que importava nesse mundo. “Não!, Não!, Não!”, o relógio dizia. “Água...Água...Água…” as gotas gritavam agudas e lascivas. E as mobílias mudas em posição de ataque. “Queria ser um morto-vivo, mas estou com tanta sede!” pensou aflitivamente. 

A criança morrendo de sede e a casa morta pela madrugada. Nunca, em toda a sua breve vida, sentira tamanha vontade de beber um mísero copo d’água. “Socorro!!!” pensou em gritar, “Tenho sede”. Se ao menos um dos mortos-vivos despertasse e feito Deus iluminasse esse mundo…Mas aí morreria de medo, tem medo de Deus como tem medo dos adultos. 

As gotas caiam, os segundos passavam e não havia luz suficiente. Ela estava completamente sozinha, sedenta e com medo: uma pacata forma de começar a vida.

Na verdade, não tinha certeza se conseguiria sobreviver à isso. Lhe assustou por alguns minutos a possibilidade de morrer de sede, pois quanto ao medo ela já sobrevivera algumas vezes, e no mais nunca conheceu alguém que morreu por ter caído em um buraco sem fim...Mas de sede, de sede sim, sabia que era possível morrer de sede. 

Sua boca estava seca como um deserto de pedra, sua garganta árida e oca, sua saliva evaporou-se e não havia mais umidade no mundo. Nem chorar parecia possível tamanha era a secura de sua experiência. Estava sofrendo muito em conhecer tão cedo a sua própria covardia. O que faria com esse sentimento impotente? 

Fechou os olhos. Não para se tornar uma morta-viva, pois notou que quanto mais tentava, mais viva ficava, mas fez-se desafio e foi procurar dentro de si a luz que não encontrava fora. Era tudo o que poderia fazer, só tendo a si mesma naquele breu. 

Então lembrou de uma simples madrugada como essa, porém estava em sua humilde casa, convencida de que um ladrão sorrateiramente pulara o muro e pretendia invadir o seu lar, foi na pontinha dos pés até a cozinha e pegou a faca que sua avó cortava sem dó as unhas indigestas da galinha morta por estrangulamento e recém depenada, com aqueles milhares de pontinhos arrepiados pelo brutal movimento de arrancar as penas, que sutilmente se assemelhava com a sua própria pele arrepiada pelos espíritos que passavam pelo seu corpo de vez em quando. Tinha visto nos filmes que as pessoas se defendiam assim, com uma faca afiada na mão! Teve então uma mistura de medo e euforia, como se estivesse num desses filmes; sim, aquela criança seria capaz de atacar um ladrãozinho.

Evocou outra memória: uma vez subirá até o último degrau de uma longa escada móvel, que dava para o topo do telhado de sua casa, aproveitou que o pedreiro se tornará um morto-vivo, como amiúde acontecia após devorar sua poderosa combinação de arroz e feijão. Aproveitou essa deixa e subiu sem olhar pra trás, imbuída por um desejo onírico de tocar as nuvens, subiu inocente a pequenina. Ao chegar no topo, virá seu telhado inteiro lá de cima, o barro que protegia o seu sono da gelada noite, respeitava aquele telhado mais do que qualquer autoridade humana. Mas eis que uma força atraiu o seu olhar para baixo e foi pega por uma sensação abissal, seu espírito foi sugado pelo chão que estava tão tão tão distante. Fechou os olhos e se agarrou na escada, suplicando para que ela não a soltasse jamais. Travou uma luta dentro de si para permanecer imóvel, mas as pernas boliam num frenesi contido. Não saberia dizer quanto tempo ficou assim, pois paralisada esqueceu de si e do tempo até que aos poucos despertou, foi abrindo os olhos e confortou sua alma na estaticidade do telhado, sentindo um cheiro quente de telha molhada. E como se ela já não existisse, apenas o seu corpo, foi descendo degrau por degrau, como se fosse fazer isso pelo resto de sua vida. 

Não conseguia entender como aquela garota das memórias podia ser ela. Não, ela não era mais aquela, não podia ser. Como podia ser? Não podia. Era outra. Podia sentir que até o seu sangue era novo, menos vermelho. Abateu-lhe uma terrível conclusão: aquela outra, então, morreu? Mas morreu de quê? Quem a matou? Só pode ter sido o Senhor, mas que maldade! Ela era uma morta-viva também afinal! Ela entendeu sem saber o ciclo absurdo da vida. A única coisa que restou da Outra foram frágeis imagens que emanavam dentro de sua cabeça a luz de um

acontecimento qualquer. “Bem, pelo menos isso. É pouco, mas é alguma coisa”. Respirou um pouco de alívio, com sorte não sabendo ainda que esses fragmentos seriam também corroído pelo tempo. 

Sem mais alarde, chegou a uma resolução: pouco em breve não seria mais o que é agora, mal sabia o que era agora, no entanto sabia, sabia da concretude de sua existência pois estava de olhos bem abertos em plena madrugada; levantou suas mãozinhas completamente pretas ao contraste da meia-luz provinda do inóspito corredor, se despediu de si sem remorsos e foi encarar aquela escuridão, fosse o que fosse, era melhor do que morrer de sede.

21 de abril de 2021

ABIGAIL NARAME 
PSEUDÔNIMO


Sobre autora: Sou estudante de psicologia, estou prestes a me formar. Nasci no interior de SP e vim morar aqui no Rio para estudar e trabalhar também. Durante a pandemia me permiti a escrever mais poemas e contos (conto foi uma experiência que começou na pandemia), como o isolamento comecei a produzir conteúdos audiovisuais que pudessem dar conta dessa vontade que nasceu não sei da onde de materializar a vida, as imagens, os instantes, os sentimentos.
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