Revista Fragmentos
  • Início
  • A Revista
  • Colunas
  • Contato

O menino era manco, tinha uma asa só.

Tinha que dar impulsos com um braço, enquanto abria novamente a asa para mais um avanço em direção ao alto. Mais parecia que escalava o céu, do que com um vôo como o das gaivotas contornando o sol.

Por ser manco e voar meio estranho, ele via tudo meio de lado, e não era uma visão fluida, era como quadro a quadro, pois ele escalava, primeiro o braço, depois a asa, e assim por diante, saltando e empurrando o céu.

Um grande esforço e um modo de ver a vida que só ele era capaz. Ninguém mais via o que ele via. Ninguém entendia o que ele era capaz de entender. Era um grande esforço entre pausas milimétricas até o próximo esforço. No entanto, naquelas pausas.... ele via, ele vivia, ele sobrevivia, ele sobrevoava, escalando o céu.

03 de junho de 2022

Mônica Andréa
Psicologia - UFRJ


Sobre o processo de criação: Após certo tempo sem exercer o escrever por escrever, meu pai, numa sugestão amorosa, disse “filha, não pare de escrever”. Eis que aquilo ficou ecoando em mim e, com a finalidade de entender o quanto eu já havia enferrujado, escrevi esse fragmento, perto da meia-noite, pouco antes de dormir. Peguei uma caneta e escrevi uma página inteira de um bloquinho, sem pausas pra pensar, nem correções, simplesmente algo brotou de dentro, como se fosse uma criança querendo muito brincar. Acredito que o conteúdo do texto apareceu dessa forma por tudo que tenho vivido, mas também por eu estar nesse estágio na Divisão de Psicologia Aplicada da UFRJ, com o professor João Ferreira, a partir de uma abordagem transdisciplinar de clínica em Psicologia. Durante as supervisões, pensamos coletivamente sobre os diferentes modos de existência, sobre construir possibilidades de transformação, criação de perspectivas outras, olhando para a vida que insiste em viver, encontrando suas brechas, atravessando frestas e produzindo movimentos aberrantes, criativos, com toda sua força de continuar existindo, criando, manifestando, produzindo levantes, mesmo diante de realidades tão mortificantes. Então, encontrei com Felippe Del Bosco, um dia sem querer, e ofertei o texto à Revista Fragmentos. Agradeço pelo carinho com que acolheu esta breve produção. 



A noite subiu e com ela se deu início a desmarginação¹ das coisas e das pessoas: seus contornos foram atenuando-se, tornando-se borrões que em breve passaram a ser indistinguíveis. Maria, que já não sabia se ainda era Maria, foi tomada pela angústia de ter o coração muito junto do coração de alguém, compartilhando suas tristezas. A gravidade do centro de seu corpo diminuiu, espalhando seus órgãos, agora flutuantes, ao seu redor. A dissolução do corpo também diluiu o que sentia, fazendo com que tivesse sensações cada vez mais brandas, como amostras de um mundo desconhecido e incapturável. A tristeza já lhe parecia justa, sendo o preço que se pagava pelo sentimento compartilhado. 

E então o sol tornava a aparecer e esquentar ao fundo, a gravidade do centro de seu corpo se reacendia e as margens dos corpos voltavam à nitidez. Era ainda Maria, mas neste dia havia algo diferente, as pessoas estavam montando tapetes de sal colorido pelas ruas: era Corpus Christi. Era isso que fazia-se todos os anos, nesse mesmo dia, e Maria sorriu porque era então seu aniversário. Gostava de pensar que aquele movimento todo era um pouco pra ela, afinal, como não seria? 

Ao caminhar pelas procissões, sentia um fluxo que transitava entre ela e os outros, mas não chegava nem perto de atravessá-la. Será que atravessava os outros? Será que tinha algo dela nesse fluxo, dado que era seu dia? Não parecia, ninguém lhe dirigia o olhar. Essa corrente, que entremeava todas as pessoas e objetos que ali estavam, parecia também uma espécie de liga, o que fazia com que todos aqueles elementos estivessem ali reunidos, dispostos daquela maneira e naquele momento. Como uma bolha transparente, era espacial, temporal, causal. 

Maria foi pra casa e encontrou sua mãe fazendo o almoço. O cheiro da comida tomava uma forma visível e colorida, dos legumes, por exemplo, saía um vapor cilíndrico e laranja. Era o que acontecia nos seus aniversários, conseguia enxergar coisas invisíveis nos outros dias do ano. À tarde, quando cochilou no sofá, sonhou com árvores gigantescas que se emaranhavam em formato de casa, uma espécie de cortejo à sua chegada. Quando acordou, o ambiente estava silencioso, todos na casa tinham saído a passeio sem que lhe acordassem. 

Será que era mesmo seu dia? Parecia ter mais de dia do que dela. 

Se dando conta de sua desimportância, se sentiu de repente a par de todo o mundo, toda natureza, toda desordem. Ao vagar pelas ruas, se sentiu ali percorrendo entrelinhas irrepresentáveis, com a condição de sua consistente distração e abstenção da captura do que vivia. Eis então que o entardecer foi tornando-se anoitecer e a desmarginação se iniciou novamente, com a legítima angústia do incapturável.


¹ Termo usado por Elena Ferrante em A amiga genial, para descrever experiências vividas por Lila, uma das personagens da trama, que utilizava a palavra forçando seu sentido comum ao se referir a ocasiões em que se dissolviam as margens das pessoas e das coisas.


15 de julho de 2022

Isabela Diógenes
Integrante da Equipe Fragmentos 
Psicologia - UFRJ


Por Isabela, Rafi e Tiago

    Os moradores da pequena Corumbau, na Bahia, já estavam acostumados com a enchente de turistas urbanos que inundava o vilarejo durante as férias de verão. Essa era a época em que os pescadores e donos dos comércios locais conseguiam fazer a renda que sustentaria a família durante o resto do ano. É lógico que, apesar do ganho financeiro, esses seres veraneios deixavam muitos rastros de sujeira, falta de educação e cuidado com o espaço. Mesmo assim, consideravam interessante a presença desses seres estranhos.


Certo dia, no meio do outono, surgem três figuras muito estranhas. Não fisicamente, mas no jeito de falar. Apesar de nitidamente se comunicarem na língua portuguesa, parecia que seus assuntos e observações não faziam sentido algum. Numa dessas conversas que trocavam entre si,  um pescador, que já havia trabalhado o dia todo e agora curtia a brisa de fim de tarde em seu barquinho, parou para escutá-los. 


Aym: O amor é coisa natural ou fabricada? 

Lis: É coisa que vai se fazendo.

Arthur: Mas se você fala que se faz, então é fabricada?

Aym: Meu caro, não se faz. É coisa que vai se fazendo. Assim como gente bebê virando gente grande.

Lis: Me parece que o amor é no gerúndio, assim como a vida.

Aym: Mas essa vida que falas, é fabricada ou natural? Ainda não compreendo.

Arthur: Talvez pensar maniqueisticamente não seja o caminho correto. Por que uma ou outra coisa? Para mim, vai depender do propósito para qual o pensamento é orientado.

Lis: Acredito que ela tem doses de ambas as dimensões. Tem seu ritmo natural, do tempo natural que nos cerca, mas também é fabricada à medida que cerca.

Aym: Clarice disse assim… “É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele”. Não seria isso a prova de um amor fabricado, fabricado por nós mesmos?

Arthur: Pois bem, há algo mais natural do que idealizar o inconcretizável? Do que sonhar um mundo impossível? Parece-me uma atitude imanente ao homem contemporâneo.

Lis: Não me parece haver nada mais fabricado do que o impossível. 

Aym: Viram? A questão não é tão simples quanto parece. Enquanto Arthur tem certeza da natureza estar por trás de nossas idealizações, Lis acredita que essas mesmas ideias impossíveis são totalmente fabricadas. Eu concordo com Lis, mas ao mesmo tempo Arthur está certo. Acredito que a questão é  justamente a contemporaneidade, e toda essa gente que vive em seu espaço-tempo. 

Lis: Mas ainda acredito que a questão do amor seja de outra ordem, que nos pousa, nos acomete. Surge através de outros sem que seja possível idealizar, espacializar ou até temporalizar. 

Arthur: De outra ordem? Que ordem? A não natural? A humana? Entretanto, parece-me intemperança pensar que somos tão únicos.

Lis: Curioso, parece-me intemperança pensar que seríamos especiais a ponto de sermos capazes de assimilar e classificar todas as ordens, fluxos ou o que quer que seja que povoa e constitui esse infinito do qual estamos diante. Drummond diz “E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia”, pois então, que nos deixemos ser acariciados por estes raios inexplicáveis.


A noite chega e está na hora do pescador voltar para sua casa. Os pensamentos, que deveriam ter se esvaído junto à brisa, borbulhavam em sua mente. Como poderia ele explicar o amor?

 
03 de junho de 2022

Isabela, Rafi e Tiago
Equipe Revista Fragmentos


Metodologia usada para a composição de uma escrita coletiva: Este texto foi produzido de maneira simultânea e remota pela equipe de escrita da Revista. Cada participante selecionou um trecho ao longo de uma semana, que foram dispostos em documento virtual e compartilhado. Após esse período, durante a reunião quinzenal do grupo de trabalho, houveram dois momentos de leitura; primeiro silenciosa e individualmente, depois em voz alta e de forma coletiva. A partir do segundo momento, es autores discutiram a respeito dos trechos, suas diferenças, semelhanças e como tocavam cada um, particularmente. Es escritores decidiram escrever em formato de diálogo, já que a proposta da atividade consistia em encontrar maneiras de escrita coletiva. Compartilharam uma janela de música na reunião - remota/virtual -, tiraram suas imagens de vídeo, microfone e abriram o documento onde haviam compartilhado os fragmentos selecionados. Cada um assumiu um eu lírico e se puseram a filosofar sobre o amor. 

Ao finalizarem o diálogo, combinaram de trabalhar na edição do texto ao longo da semana seguinte. O objetivo era, além de ajustes técnicos, conseguir criar contexto literário para o texto e delimitar contornos a fim de diluir a complexidade com poeticidade.

*A trilha sonora consistia numa playlist de Bob Marley
Postagens mais recentes Postagens mais antigas Página inicial

Fragmentos Publicados

  • ►  2021 (43)
    • ►  abril 2021 (2)
    • ►  maio 2021 (7)
    • ►  junho 2021 (11)
    • ►  julho 2021 (6)
    • ►  agosto 2021 (7)
    • ►  setembro 2021 (7)
    • ►  outubro 2021 (3)
  • ▼  2022 (13)
    • ►  maio 2022 (1)
    • ►  junho 2022 (1)
    • ►  julho 2022 (1)
    • ▼  agosto 2022 (3)
      • Escrita Coletiva: Viajantes
      • Desmarginação
      • Atrás das nuvens - Mônica Andréa
    • ►  outubro 2022 (1)
    • ►  novembro 2022 (2)
    • ►  dezembro 2022 (4)

Temas

Colagem Digital Coluna Criação Criação Coletiva Eleições Entrevistas Fragmentos Pandêmicos 2021 Homenagem LGBTI+ Música Parcerias na UFRJ Poema Poesia Política Poéticas Políticas das Emergências Prosa Psicologia Universidade Vídeo estÉTICAs Ética Profissional

Integrantes da Revista

  • Carolina Alves (1)
  • Felippe Del Bosco (3)
  • Flora Dias (4)
  • Isabela Diógenes (2)
  • Manuela Bissoli (1)
  • Marcus Alencar (1)
  • Rafi Nobrega (2)
  • Tiago Castro (1)

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Tecnologia do Blogger.

Colaboradores Externos

Rafael Vasconcellos Gabi Neves Adriana Herz Domingues Autoria anônima Bruna Mello Bruno Sobral Gabriela Castro Gilson Secundino Henrique Maluf Luany Menezes Lucas Bourdette Lucas Correia Mariana Nolding Mônica Andréa Paulo Gama Sol Diamand Suzana Massa Álan Belém

Copyright © Revista Fragmentos | Núcleo Trabalho Vivo | Instituto de Psicologia | UFRJ

Kinsley Theme. Desenvolvido por OddThemes

↟